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A técnica da linha

De acordo com o Google, existem diversas maneiras para retirar uma aliança presa no dedo. Em casos extremos envolvendo inchaço ou corte parcial da circulação, é necessário o uso de equipamentos como um alicate, um tesourão corta-a-frio ou uma micro-retifica, que é uma espécie de serra elétrica.  Mas em se tratando de ocorrências mais amenas, a maioria dos tutoriais recomendados pelo corpo de bombeiros sugere que se tente primeiro a técnica da linha: basta levantar um pouco do anel preso até que uma linha passe por ele, e usar a mesma para puxar a peça até a extremidade do dedo, desprendendo-o aos poucos conforme é empurrado para fora. É avaliado por especialistas como o procedimento menos agressivo e invasivo, capaz de prevenir a segurança do usuário e danos acidentais à peça.

No entanto, não há nenhum tutorial disponível no Google sobre como retirar do coração a pessoa para quem você deu a aliança. Sim, eu procurei.

***

Ser traído sempre foi o meu maior medo. Pra quem é acostumado a se aventurar no amor como eu – quase como quem pratica vôos no trapézio sem uma rede de proteção – não há como negar a possibilidade de que, eventualmente, você pode cair e quebrar a cara. Arriscando, inclusive, nunca mais ser capaz de voar. Mas uma traição não é algo tão fugaz que pode ser traduzido em um simples texto, ou por meio de uma simples metáfora. É algo que mexe com você – quem você é, o que procura na vida, e aonde ainda espera chegar. Se é que ainda espera alguma coisa.

Ser traído é como ficar paralisado. Você acorda de manhã e reencontra o lado esquerdo da cama, vazio. E então passa alguns minutos ali, revivendo toda a história que levou àquele lado esquerdo vazio da cama. E considera se vale mesmo a pena sair dali. Até respirar fundo, sentar-se na beirada por alguns instantes, e só então levantar-se. Para onde vai, ou o que vai fazer primeiro, você não sabe. Só sabe que não está realmente paralisado, e que a vida continua. Com ou sem ela.

Meu medo sempre contemplou as duas alternativas: a incapacidade de seguir em frente, e a determinação para levantar da cama de novo mesmo sem saber o motivo. Não havia mais motivo. Nós tínhamos tudo. E pela primeira vez na vida, era mesmo o bastante para mim. Mas não para ela. Ela queria mais do que tudo. E no final das contas, é uma lógica sobre a qual eu não posso questionar. Pra quem esteve acostumado a seguir em frente, à procura do inalcançável, deixando corações partidos para trás, eu entendo. Agora, ser aquele deixado para trás... Ainda é novo. Ainda dói. E sou relembrado disso todas as manhãs em que acordo sozinho.

A única pessoa com todas as respostas que procuro, é a única para quem eu sequer faria uma pergunta de novo. E não estou me referindo a ela, mas a quem eu pensava que ela era. A mulher por quem eu me apaixonei. A mulher com quem eu queria passar o resto da minha vida. A mulher que fez amizade com a minha mãe, que conquistou meus amigos, que ocupava parte do meu guarda-roupa e que controlava a temperatura do ar condicionado no quarto. A mulher que tinha sonhos distantes, e que ao mesmo tempo fez com que os meus se tornassem realidade. Tudo o que eu queria nessa vida, encontrei nela. Em nós. O mundo fazia sentido. Felicidade era rotina. Amar não soava impossível.

E então, com uma mensagem de texto, ela desapareceu. Quando me dei conta, seus pertences não estavam mais aqui. Seu perfume dissipou no ar. A cama dobrou de tamanho, mas não sem antes me esvaziar por completo. E a única vez que a vi depois disso, ela estava nos braços de outro. Sorrindo. Foi o bastante para que nunca mais quisesse vê-la.

Sou grato, ao menos, por ter sido finalmente apresentado aos meus limites.

Ser traído muda quem você é. Mexe com seu jeito de encarar as coisas. Tira o significado de tudo que já fizeram juntos, e tudo que pensa em fazer sozinho agora. Ou com outra pessoa. Ser traído te quebra como um copo que cai ao chão e se transforma em um milhão de cacos de vidro. E quanto mais você tenta seguir em frente, mais você se corta nos pedaços escondidos pelo caminho. Estou sangrando de saudade – não dela, mas de quem eu costumava ser. Alguém que acreditava que amanhã seria melhor. Alguém que amava sem medo. Alguém que se jogava no desconhecido, tentando voar, sem olhar para baixo.

Eu caí. Eu quebrei. Eu morri. E mesmo assim, eu levantei da cama.

***

Eu ainda tenho a aliança. Está guardada no mesmo lugar em que a atirei, no dia em que o mundo acabou – no fundo da minha mochila. Ironia ou não, mesmo quando estava tentando seguir em frente, estive carregando-a comigo esse tempo todo. Às vezes um coração partido vai além das metáforas e mágoas que você tenta encobrir numa terça-feira qualquer, quando acorda com o som da música que costumava ser de vocês, tocando em algum lugar lá fora. Quebrar uma aliança parece mesmo ser algo simples, já que existem tutoriais para isso. Mas eu não penso em quebrá-la, até porque já existem coisas demais quebradas ao meu redor.

Eu sei o que você está pensando – “onde já se viu compartilhar esse tipo de coisa?” Bom, todos os outros procedimentos falharam: fingir que está tudo bem, me afundar em trabalho, colocar a casa em ordem, tentar sair com alguém nova, beber até acreditar que canto bem, viajar de bar em bar para evitar parar em casa e ser obrigado a pensar – ou pior: sentir.

Essa é a minha versão da técnica da linha – ou melhor, linhas. Muitas linhas. Quantas forem necessárias até que eu escreva, desabafe e abra mão de tudo que está cortando a minha circulação. E farei isso até finalmente me desprender desse trauma e empurrá-lo para fora da minha vida. Ao contrário do que dizem os especialistas – e amigos próximos – esse é o procedimento mais invasivo e agressivo de todos. Mas a peça que vos escreve já sofreu danos demais.

Tempos desesperados requerem textos desesperados. Ainda segundo o Google, uma aliança de aço cirúrgico, com aproximadamente 0,6 cm de largura e 2,2 mm de espessura, leva em média dez anos para se decompor naturalmente.

Eu vou esperar...

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